Existência de Deus.
1. Sendo Deus a causa primária de todas as coisas, o ponto de
partida de tudo o que existe, a base em que repousa a obra da criação, é a
questão que convém considerar em primeiro lugar.
É princípio elementar que se julgue uma causa pelos seus efeitos,
mesmo quando não é possível vê-la. A Ciência vai mais longe: ela calcula o
poder da causa pelo poder do efeito, e pode até determinar-lhe a natureza. É
assim, por exemplo, que a Astronomia concluiu pela existência de planetas em determinadas
regiões do espaço, pelo conhecimento das leis que regem o movimento dos astros;
procurou-se e encontrou-se os planetas podendo- se
dizer, na realidade, que eles foram descobertos antes de serem vistos.
2. Numa ordem de fatos mais comuns, se estamos mergulhados num
espesso nevoeiro, sob uma claridade difusa, julgamos que o Sol está no
horizonte, ainda que não vejamos o Sol.
Se um pássaro, em pleno voo, é atingido por
um tiro mortal, presumimos que um hábil atirador o acertou, embora não vejamos
o atirador. Portanto, nem sempre é necessário ver uma coisa para saber que ela
existe. É observando os efeitos que se chega ao conhecimento das causas.
3. Um outro princípio também bastante
elementar, e passado ao estado de axioma por força da verdade, é que todo
efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.
Se alguém perguntasse quem é o inventor de certo mecanismo
engenhoso, o arquiteto de determinado monumento, o escultor de tal estátua ou o
pintor de tal quadro, que pensaríamos de quem respondesse que todas essas obras
se fizeram sozinhas?
Quando vemos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que
ela deve ser o produto de um gênio porque só uma grande inteligência poderia
presidir à sua concepção. Julgamos, no entanto, que ela foi feita por um homem
porque reconhecemos que a obra não está acima da capacidade humana, mas ninguém
terá a ideia de dizer que ela saiu do cérebro de um idiota, de um ignorante e,
menos ainda, que ela é o trabalho de um animal ou o produto do acaso.
4. Em toda parte reconhecemos a presença do homem pelas suas
obras. Se chegássemos a uma terra desconhecida, mesmo que fosse um deserto, e
descobríssemos o menor vestígio de trabalho humano, concluiríamos que homens
habitam ou habitaram essa região. A existência dos homens antediluvianos não se
provaria somente pelos fósseis humanos, mas também, e com igual certeza, pela
existência, nos terrenos daquela época, de objetos produzidos pelos homens. Um
fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, bastarão para comprovar
a sua presença.
Pela rudeza ou perfeição do trabalho reconheceremos o grau de
inteligência ou de adiantamento daqueles que o executaram.
Se, então, estando em uma região habitada exclusivamente por
selvagens, descobrimos uma estátua digna de Fídias24, não
hesitaremos em dizer que os selvagens eram incapazes de tê-la feito, que ela
deve ser obra de uma inteligência superior à inteligência dos selvagens.
24 Fídias: o maior escultor da
antiga Grécia (Atenas, 496/488 - Olímpia, 431 a.C.).
Entre suas obras mais célebres temos a estátua de Zeus e a de Minerva, em
bronze. (N.T., segundo o Dicionário Lello
Universal,
vol. II.)
5. Pois bem! Lançando-se o olhar sobre as obras da Natureza,
observando-se a providência, a sabedoria e a harmonia que presidem a todas
elas, reconhece-se que não existe uma que não ultrapasse a mais elevada
capacidade da inteligência humana, pois o maior gênio da Terra não saberia
criar a mais insignificante erva. Uma vez que a inteligência humana não pode
produzi-las, deduz-se que elas são obra de uma inteligência superior à da
humanidade.
Essa harmonia e essa sabedoria se estendem desde o grão de areia,
desde a mais simples forma de vida até os inumeráveis astros que circulam no
espaço, e é preciso concluir que essa inteligência alcança o infinito, a menos
que se diga que há efeitos sem causa.
6. A isso alguns opõem o seguinte raciocínio: As obras ditas da
Natureza são o produto de forças materiais que agem mecanicamente, por causa
das leis de atração e repulsão. As moléculas dos corpos inertes se agregam e se
desagregam sob o poder dessas leis. As plantas nascem, brotam, crescem e se
multiplicam sempre da mesma maneira, cada uma na sua espécie, por efeito dessas
mesmas leis; cada indivíduo se assemelha ao seu ascendente; o crescimento, a
floração, a frutificação e a coloração, são subordinados a causas materiais,
como o calor, a eletricidade, a luz, a umidade, etc. O mesmo ocorre com os
animais. Os astros se formam pela atração molecular e se movem perpetuamente em
suas órbitas por efeito da gravitação.
Essa regularidade mecânica no emprego das forças naturais não
revela uma inteligência livre. O homem movimenta seu braço quando quer e como
quer; mas aquele que o movimentasse no mesmo sentido, desde o nascimento até a
morte, seria um autômato.
Ora, as forças orgânicas da Natureza, consideradas no seu
conjunto, são de certo modo automáticas.
Tudo isso é verdade, mas essas forças são efeitos que devem ter
uma causa, e ninguém pretendeu que elas constituíssem a Divindade. Elas são
materiais e mecânicas, não são de forma alguma inteligentes por si mesmas, isso
também é verdade, mas são postas em ação, distribuídas e adequadas às
necessidades de cada coisa, por uma inteligência que não é a dos homens. A
aplicação útil dessas forças é um efeito inteligente que denota uma causa
inteligente. Um pêndulo se move com uma regularidade automática e é nessa
regularidade que está o seu mérito. A força que o move é puramente material e
não é, de modo algum, inteligente, mas o que seria esse pêndulo se uma inteligência
não houvesse combinado, calculado e distribuído o
emprego dessa força, para fazê-lo movimentar-se com precisão? Do fato de a
inteligência não estar no mecanismo do pêndulo e de que ninguém a vê, seria racional concluirmos que ela não existe? Vamos
julgá-la pelos seus efeitos.
A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; assim
como a engenhosidade do mecanismo atesta a inteligência e o conhecimento desse. Quando se vê um desses relógios complicados que
marcam a hora das principais cidades do mundo e o movimento dos astros que se
movem no espaço, relógios que parecem, em uma palavra, falar, para dar, no
momento desejado, a informação que se precisa, jamais veio ao pensamento de
alguém dizer: eis aí um relógio muito inteligente.
O mesmo ocorre com o mecanismo do Universo: Deus não se mostra,
mas se confirma pelas suas obras.
7. Assim, a existência de Deus é um fato comprovado não só pela
revelação, mas também pela evidência material dos fatos.
Os povos mais selvagens não tiveram revelação, entretanto eles
creem instintivamente na existência de um poder sobre-humano; é que os próprios
selvagens não escapam às consequências lógicas, eles veem coisas que estão
acima do poder humano e disso concluem que elas provêm de um ser superior à
humanidade.
Da natureza divina
8. Não é dado ao
homem sondar a natureza íntima de Deus.
Temerário
seria aquele que pretendesse levantar o véu que o oculta de nossos olhos,
falta-nos ainda o sentido que só se adquire pela completa depuração do
espírito. Mas, se o homem não pode penetrar na essência de Deus, tendo como
premissa a sua existência, pode, pelo raciocínio, chegar a conhecer-lhe os
atributos necessários, uma vez que, reconhecendo o que ele não pode
absolutamente ser, sem deixar de ser Deus, deduz daí o que ele deve ser.
Sem o
conhecimento dos atributos de Deus, seria impossível compreender a obra da
criação; é o ponto de partida de todas as crenças religiosas, e é por não terem
se reportado a esses atributos, como ao farol capaz de orientá-las, que a
maioria das religiões errou em seus dogmas. As que não atribuíram a Deus a
onipotência, imaginaram vários deuses, as que não lhe
atribuíram à soberana bondade, fizeram dele um Deus ciumento, colérico, parcial
e vingativo.
9. Deus é a
suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, uma
vez que ele não pode fazer nem compreender tudo o que existe; a de Deus,
abrangendo o infinito, tem que ser infinita. Se a supuséssemos
limitada em um ponto qualquer, poderíamos conceber um ser ainda mais
inteligente, capaz de compreender e de fazer o que o outro não faria, e assim
por diante até o infinito.
10. Deus é
eterno, isto é, não teve começo e não terá fim.
Se tivesse tido
princípio, teria saído do nada. Ora, não sendo o nada coisa
alguma, coisa alguma pode produzir. Ou, então, teria sido criado por outro ser
anterior e, nesse caso, este ser é que seria Deus. Se supuséssemos para Deus um
começo ou um fim, poderíamos, portanto conceber um ser como tendo existido
antes dele ou podendo existir depois dele, e assim por diante, até o infinito.
11. Deus é
imutável. Se ele estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo
não teriam nenhuma estabilidade.
12. Deus é
imaterial, isto é, a sua natureza difere de tudo o que chamamos de matéria.
De outra forma não seria imutável, pois estaria sujeito às transformações da
matéria.
Deus não tem uma
forma apreciável pelos nossos sentidos, se tivesse, seria matéria. Dizemos: a
mão de Deus, o olho de Deus, a boca de Deus, porque o homem, conhecendo só a si,
toma-se como termo de comparação para tudo o que não compreende.
São ridículas
essas imagens em que Deus é representado pela figura de um ancião de longas
barbas, envolto em um manto.
Elas têm o
inconveniente de rebaixar o ser supremo às mesquinhas dimensões da humanidade,
e daí a lhe atribuírem as paixões humanas e a fazerem
dele um Deus colérico e ciumento, é só um passo.
13. Deus é
onipotente. Se não possuísse o poder supremo, poderíamos conceber uma
entidade mais poderosa e assim por diante, até que se encontrasse o ser que
nenhum outro pudesse ultrapassar em poder. Este, então, é que seria Deus. Ele
não teria feito todas as coisas, e aquelas que ele não tivesse feito seriam
obra de um outro deus.
14. Deus é
soberanamente justo e bom. A providencial sabedoria das leis divinas se
revela tanto nas mais pequenas como nas maiores
coisas, e essa sabedoria não permite que se duvide nem da sua justiça, nem da
sua bondade. Estas duas qualidades implicam todas as outras; se as supuséssemos
limitadas, ainda que fosse em um único ponto,
poder-se-ia conceber um ser que as possuiria em um grau mais alto, e que lhe
seria superior.
O fato de uma
qualidade ser infinita, exclui a possibilidade da
existência de uma qualidade contrária que a diminuiria ou anularia. Um ser infinitamente
bom não poderia ter a mais insignificante parcela de maldade, nem o ser infinitamente
mau poderia ter a mais insignificante parcela de
bondade, do mesmo modo que um objeto não pode ser de um negro absoluto com a
mais ligeira nuança de branco, nem de um branco absoluto com a mais pequenina
mancha negra.
Assim, Deus não
poderia ser ao mesmo tempo bom e mau, porque então, não possuindo nem uma nem
outra dessas qualidades no grau supremo, não seria Deus; todas as coisas
estariam sujeitas ao seu capricho e não haveria estabilidade para nada.
Portanto, ele só
poderia, ser infinitamente bom ou infinitamente mau.
Ora, como as suas obras testemunham a sua sabedoria, a sua bondade e a sua
solicitude, conclui-se que, não podendo ser ao mesmo tempo bom e mau sem deixar
de ser Deus, ele deve ser infinitamente bom.
A soberana
bondade implica na soberana justiça, porque se Deus agisse injustamente ou com
parcialidade em uma só circunstância, ou com relação a uma só das
suas criaturas, não seria soberanamente justo e, consequentemente, não
seria soberanamente bom.
15. Deus é
infinitamente perfeito. É impossível conceber Deus sem o infinito das
perfeições, sem o que não seria Deus, pois sempre se poderia conceber um ser
possuindo o que lhe faltasse.
Para que nenhum
ser possa ultrapassá-lo, é preciso que ele seja infinito em tudo.
Sendo infinitos,
os atributos de Deus não são passíveis de aumento nem de diminuição, sem isso
não seriam infinitos e Deus não seria perfeito. Se dele se tirasse a mínima
parcela de um só dos seus atributos, não haveria Deus, uma vez que poderia
existir um ser mais perfeito.
16. Deus é
único. A unidade de Deus é consequência do infinito absoluto das suas
perfeições. Só poderia existir outro
Deus, sob a
condição de ser igualmente infinito em todas as coisas, porque se houvesse a
mais ligeira diferença entre eles, um seria inferior ao outro, subordinado ao
seu poder, e não seria Deus.
Se houvesse
entre eles igualdade absoluta, existiria, desde sempre, um mesmo pensamento,
uma mesma vontade e um mesmo poder; assim, confundidos em sua identidade, não
haveria, na realidade, mais do que um único Deus. Se cada um tivesse
atribuições especiais, um faria o que o outro não fizesse, e então, não
existiria igualdade perfeita entre eles, uma vez que nem um nem outro possuiria
a autoridade soberana.
17. Foi o
desconhecimento do princípio do infinito das perfeições de Deus que gerou o
politeísmo, culto de todos os povos primitivos; eles atribuíam a Divindade a
todo poder que lhes parecia acima dos poderes humanos. Mais tarde, a razão
levou-os a reunir essas diversas potências em uma só. Depois, à medida que os
homens compreenderam a essência dos atributos divinos, retiraram de seus
símbolos as crenças que representavam a negação desses atributos.
18. Em resumo,
Deus só pode ser Deus, sob a condição de não ser ultrapassado por nenhum outro
ser, porque então o ser que o ultrapassasse seja no que for, ainda que apenas
na grossura de um cabelo, seria o verdadeiro Deus. Por isso é preciso que ele
seja infinito em todas as coisas.
É assim que,
comprovada a existência de Deus pelas suas obras, chega-se, pela simples
dedução lógica, a determinar os atributos que o caracterizam.
19. Deus é,
então, a suprema e soberana inteligência; é único, eterno, imutável,
imaterial, onipotente, soberanamente justo e bom, infinito em todas as suas
perfeições, e não pode ser diferente disso.
Esta é a base
sobre a qual repousa o edifício universal; é o farol cujos raios se estendem
sobre o Universo inteiro, e que sozinho pode guiar o homem na pesquisa da
verdade; seguindo-o, ele nunca se transviará, e se ele frequentemente tem se
desviado é por não ter seguido a rota que lhe era indicada.
Este é, também,
o critério infalível de todas as doutrinas filosóficas e religiosas; o homem
tem, para avaliá-las, uma medida rigorosamente exata nos atributos de Deus e
pode afirmar a si mesmo, com convicção, que toda teoria, todo princípio, todo
dogma, toda crença, toda prática que estiver em contradição com um só desses
atributos, que tenda não somente a anulá-lo, mas simplesmente a enfraquecê-lo,
não pode estar com a verdade.
Em filosofia, em
psicologia, em moral e em religião, só é verdadeiro o que não se afaste, nem um
til, das qualidades essenciais da Divindade. A religião perfeita será aquela
cujos artigos de fé não estejam em oposição a essas qualidades, e da qual todos
os dogmas possam passar pela prova desse controle, sem dele receber qualquer
prejuízo.
A
providência
20. A
providência é a solicitude de Deus para com todas as suas criaturas. Deus está
em toda parte, tudo vê e a tudo preside, mesmo às mais
pequenas coisas. É nisso que consiste a ação providencial.
“Como Deus, tão
grande, tão poderoso e tão superior a tudo, pode imiscuir-se em detalhes
ínfimos, preocupar-se com os menores atos e com os menores pensamentos de cada
indivíduo?” Esta é a pergunta que a incredulidade faz a si mesma, de onde ela
conclui que, admitindo a existência de Deus, sua ação só se exerce sobre as
leis gerais do Universo; que este funciona desde toda a eternidade em virtude
dessas leis, às quais cada criatura se acha submetida na sua esfera de
atividade, sem que tenha necessidade do concurso incessante da providência.
21. Em seu
estado atual de inferioridade, os homens só dificilmente podem compreender Deus
infinito; porque sendo restritos e limitados eles o imaginam restrito e
limitado como eles próprios. Representam-no como um ser circunscrito, e dele
fazem uma imagem semelhante à própria imagem. Os quadros que o pintam com traços
humanos contribuem muito para incutir esse erro no espírito dos povos, que nele
adoram mais a forma que o pensamento. Para a maioria, ele é um soberano
poderoso, sentado em um trono inacessível, perdido na vastidão dos céus, e
porque suas faculdades e suas percepções são limitadas, eles não compreendem
que Deus possa ou se digne intervir diretamente nas pequeninas coisas.
22. Na
incapacidade em que está o homem de compreender a essência própria da
Divindade, ele não pode fazer mais que uma ideia aproximada dela, com a ajuda
de comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que podem, pelo menos,
mostrar-lhe a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece
impossível.
Suponhamos um
fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos; é evidente que cada
molécula desse fluido, achando-se em contato com cada molécula da matéria,
produzirá nos corpos uma ação idêntica àquela que produziria a totalidade do
fluido.
Isso é o que a
Química demonstra, diariamente, em proporções limitadas.
Esse fluido, não sendo inteligente, age mecanicamente somente
pelas forças materiais; mas se nós supusermos o fluido dotado de inteligência,
de faculdades perceptivas e sensitivas, ele agirá, não mais cegamente, mas com
discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, entenderá e sentirá.
As propriedades do fluido perispiritual podem nos dar uma ideia
sobre isso. Ele não é inteligente por si mesmo, pois que é matéria, mas é o
veículo do pensamento, das sensações e percepções do espírito. É por causa da
sutileza desse fluido que os espíritos penetram em toda parte, que escrutam
nossos pensamentos mais íntimos, que veem e agem à distância. É a um certo grau de purificação desse fluido que os espíritos
superiores devem o dom da ubiquidade; basta um raio de seus pensamentos
dirigido a diversos pontos, para que possam neles manifestar, simultaneamente,
a sua presença. A extensão dessa faculdade está subordinada ao grau de elevação
e purificação do espírito.
É ainda com a ajuda desse fluido que o próprio homem age à
distância, pelo poder da vontade, sobre alguns indivíduos; que ele modifica,
dentro de certos limites, as propriedades da matéria; dá a substâncias inativas
propriedades determinadas, repara desordens orgânicas e realiza curas pela
imposição das mãos.
23. Os espíritos, porém, ainda que sejam elevados, são criaturas
limitadas em suas faculdades, em seu poder e na extensão de suas percepções, e
não poderiam, sob esse aspecto, se aproximar de Deus. Entretanto, eles podem
nos servir de ponto de comparação.
O que o espírito só consegue realizar dentro de um limite
restrito, Deus, que é infinito, o realiza em proporções indefinidas.
Há, ainda, a
diferença de que a ação do espírito é momentânea e subordinada às
circunstâncias, a de Deus é permanente; o pensamento do espírito só alcança um
tempo e um espaço circunscrito; o de Deus abrange o Universo e a eternidade. Em
uma palavra: entre os espíritos e Deus há a distância do finito ao infinito.
24. O fluido
perispiritual não é o pensamento do espírito, mas o agente e o intermediário
desse pensamento; como é ele que o transmite, fica, de certo modo, dele impregnado.
Na impossibilidade em que nos achamos de isolar o pensamento, parece-nos que
ele e o fluido são um só, como acontece com o som e o ar, de maneira que
podemos, a bem dizer, materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna
sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna
inteligente.
25. Que seja ou
não assim, quanto ao pensamento de Deus, quer dizer, que ele aja diretamente ou
por intermédio de um fluido, para facilitar o nosso raciocínio, vamos
representá-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente enchendo o Universo
infinito e penetrando todas as partes da criação: a Natureza inteira está
mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as partes
de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que o todo, cada
átomo desse fluido, se assim se pode expressar, possuindo o pensamento, isto é,
os atributos essenciais da Divindade, e estando esse fluido em toda parte, tudo
estará submetido à sua ação inteligente, à sua previdência e à sua solicitude.
Não haverá um ser, por mais ínfimo que seja, que não
esteja de alguma forma saturado desse fluido. Nós estamos assim,
constantemente, em presença da Divindade e não podemos subtrair uma só das
nossas ações ao seu olhar. O nosso pensamento está em contato incessante com o
seu pensamento, e é com razão que se diz que Deus lê no mais profundo recôndito
do nosso coração; nós estamos nele, como ele está em nós, segundo a
palavra do Cristo.
Para estender
sua solicitude sobre todas as criaturas, Deus não precisa lançar seu olhar do
alto da imensidade, para que ele ouça nossas preces, elas não precisam transpor
o espaço, nem ser ditas com voz retumbante, uma vez que, estando Deus
continuamente ao nosso lado, nossos pensamentos se repercutem nele.
Nossos pensamentos são como os sons de um sino, que fazem vibrar
todas as moléculas do ar ambiente.
26. Longe de nós a ideia de materializar a Divindade. A imagem de
um fluido universal inteligente não é, evidentemente, mais que uma comparação,
própria para dar uma ideia mais justa de Deus que a dos quadros que o
representam sob uma figura humana. Ela tem por objetivo fazer compreender a
possibilidade que Deus tem de estar em toda parte e de se ocupar com todas as
coisas.
27. Nós temos sob os olhos, constantemente, um exemplo que pode
nos dar uma ideia da forma pela qual a ação de Deus pode se exercer sobre as
partes mais recônditas de todos os seres, e, por consequência, como as impressões
mais sutis de nossa alma chegam até ele. Esse exemplo é tirado de uma instrução
dada por um espírito a esse respeito:
“Um dos atributos da Divindade é ser infinito; não se pode
representar o Criador como tendo uma forma, um limite, uma delimitação qualquer”.
Se ele não fosse infinito, poder-se-ia conceber qualquer coisa maior que ele e
essa qualquer coisa é que seria Deus. Sendo infinito, Deus está em toda parte,
porque, se não estivesse em toda a parte não seria infinito; não se pode sair
desse dilema. Portanto, se há um Deus, e ninguém tem dúvida sobre isso, esse
Deus é infinito e não se pode conceber nenhum espaço sem a sua presença. Por
consequência, ele se acha em contato com todas as suas criações; ele as
envolve, elas estão nele; portanto é compreensível que ele esteja em relação
direta com cada criatura, e, para se fazer compreender
o mais materialmente possível de que maneira esta comunicação tem lugar
universalmente e constantemente, examinemos o que se passa no homem entre seu
espírito e seu corpo.
O homem é um pequeno mundo do qual o diretor é o espírito, e o
princípio dirigido é o corpo. Nesse universo, o corpo representará uma criação
em que o espírito seria Deus. (Compreenda-se que aqui há apenas uma simples
questão de analogia e não de identidade). Os membros desse corpo, os diferentes
órgãos que o compõem, seus músculos, seus nervos, suas articulações, são
igualmente individualidades materiais, se assim se pode dizer, localizadas em
pontos especiais do referido corpo. Ainda que o número dessas partes
constitutivas, tão variadas e de natureza tão diferentes, seja considerável,
ninguém irá pensar que se possam produzir movimentos, ou que uma impressão
qualquer tenha lugar em um ponto determinado, sem que o espírito tenha
consciência disso. Há sensações diferentes em muitos lugares simultaneamente?
O espírito as sente todas, discerne-as,
analisa-as, determinando em cada uma sua causa e seu ponto de ação.
Um fenômeno idêntico ocorre entre Deus e a criação: Deus está em
toda parte na Natureza, como o espírito está em toda parte no corpo. Todos os
elementos da criação estão em relação constante com Deus, assim como todas as
células do corpo humano estão em contato direto com o ser espiritual. Não há
razão, pois, para que, num e noutro caso, fenômenos da mesma natureza não se
produzam da mesma maneira.
Um membro se agita: o espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o
sabe. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em
vibração: o espírito experimenta cada manifestação, distinguindo-as e
localizando-as. As diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam,
pensam, agem diversamente, e Deus sabe tudo o que se passa e destina a cada uma o que lhe é particular.
“Daí pode-se deduzir igualmente a solidariedade da matéria e da
inteligência, a solidariedade de todos os seres de um mundo entre eles, a
solidariedade de todos os mundos e, por fim, a das criações e do Criador.”
(Quinemant 25; Sociedade de Paris, 1867.)
25 E. Quinemant: magnetizador e um
fervoroso adepto do Espiritismo. Vivia em Sétif, Argélia. Com dedicação prestou
numerosos serviços a pessoas sofredoras. Desencarnou em 20 de abril de 1867 e
deu sua primeira comunicação na Sociedade de Paris em 12 de maio do mesmo ano.
(N.T.)
28. Compreendemos o efeito: isto já é muito. Do efeito remontamos
à causa, e avaliamos a sua grandeza pela grandeza do efeito, mas a sua essência
íntima nos escapa, como a da causa de uma imensidade de fenômenos. Conhecemos
os efeitos da eletricidade, do calor, da luz e da gravitação; conseguimos
medi-los, entretanto ainda desconhecemos alguns aspectos dos princípios que os
produzem. 26 Será então mais racional negar
o princípio divino, porque não o compreendemos?
26 O texto original
afirma, em relação à causa de todos os fenômenos citados no mesmo parágrafo,
que: “...entretanto ignoramos a natureza íntima do
princípio que os produz”, uma vez que à época, os conhecimentos da Física,
principalmente em relação à estrutura do átomo, ainda não permitiam trazer à
luz os princípios aludidos pelo Codificador. Hoje, no início do século XXI, os
conhecimentos acumulados, se ainda não permitem uma explicação definitiva
desses princípios, já possibilitam uma abordagem bastante exata da natureza do
seu funcionamento, o que recomendou a alteração efetuada, substituindo o trecho
original por: “...ainda desconhecemos alguns aspectos
dos princípios que os produzem”. (N.R.)
29. Nada impede que se admita para o princípio da soberana
inteligência, um centro de ação, um foco principal irradiando incessantemente,
inundando o Universo com os seus eflúvios, como o Sol com a sua luz. Mas, onde
está esse foco? É o que ninguém pode responder. É provável que ele não esteja
fixado em um ponto determinado, como não o está a sua ação, e que ele percorra
incessantemente as regiões do espaço infinito. Se simples espíritos têm o dom
da ubiquidade, em Deus, essa faculdade tem de ser sem limites. Uma vez que Deus
preenche o Universo, poderíamos ainda admitir, por hipótese, que esse foco não
tem necessidade de se transportar, e que ele se forma sobre todas as partes
onde a soberana vontade julgue conveniente que ele se produza, de onde se
poderia dizer que ele está em toda parte e em parte alguma.
30. Diante desses problemas insondáveis, nossa razão deve se
humilhar. Deus existe: disso não podemos duvidar. Ele é infinitamente justo e
bom: essa é a sua essência. A sua solicitude se estende a tudo: nós o
compreendemos. Portanto, ele só pode querer o nosso bem, é por isso que devemos
ter confiança nele. Eis aí o essencial, quanto ao mais, esperamos que sejamos
dignos de compreendê-lo.
A
visão de Deus
31. Já que Deus
está em toda parte, por que não o vemos?
Nós o veremos
quando deixarmos a Terra? Estas são as perguntas que se fazem diariamente.
É fácil
responder à primeira: nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os
tornam impróprios à visão de certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos
fluidos escapam totalmente à nossa visão, até mesmo aos instrumentos,
entretanto, não duvidamos da sua existência. 27 Vemos o efeito da
peste, mas não vemos o fluido que a transporta28 Vemos os corpos se
moverem sob a influência da força de gravitação, mas nós não vemos essa força.
27
Este é o caso das emissões
solares de neutrinos, de dificílima detecção. Elas não estão sujeitas a campos
gravitacionais ou eletromagnéticos, nem são detidas ou influenciadas, até onde
se sabe, por qualquer barreira material, atravessando, por exemplo, o planeta
Terra, como se nada existisse aqui. (N.R.)
28 Allan Kardec, no texto original,
atribui a causa da peste a um fluido, de acordo com os conhecimentos da sua
época. Os vírus, que são os agentes causadores de muitas dessas doenças, só
viriam a ser descobertos algumas décadas após, em
1894. (N.R.)
32. As coisas de essência espiritual não podem ser percebidas
pelos órgãos materiais; só podemos ver os espíritos e as coisas do mundo
imaterial com a visão espiritual. Somente nossa alma, portanto, pode ter a
percepção de Deus. Ela o vê imediatamente após a morte? É o que somente as
comunicações de além-túmulo podem nos responder. Por elas sabemos que a visão
de Deus é privilégio apenas das almas mais purificadas e que bem poucas
possuem, ao deixarem o envoltório terrestre, o grau de desmaterialização
necessário. Algumas comparações simples poderão facilitar a compreensão do que
foi dito.
33. Uma pessoa que se encontre no fundo de um vale, envolto por
denso nevoeiro, não consegue ver o Sol. Entretanto, como já dissemos
anteriormente, pela luz difusa, ela percebe a presença do Sol. Se começar a
subir a montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro irá se dissipando, a
luz se tornando cada vez mais viva, ela, porém, ainda não vê o Sol, quando
começa a percebê-lo ele ainda está velado, visto que o menor
nevoeiro basta para enfraquecer seu brilho. Só após se elevar acima da
camada de névoa, chegando onde o ar esteja perfeitamente límpido, poderá
contemplá-lo em todo o seu esplendor.
Passa-se o mesmo que a alguém cuja cabeça estivesse envolta por
diversos véus; inicialmente ele não veria nada; a cada véu que fosse retirado
ele distinguiria um clarão cada vez mais forte, mas somente quando o último véu
desaparecesse é que ele perceberia nitidamente as coisas. O mesmo ocorre a um
líquido carregado de matérias estranhas; de início ele está turvo; a cada
destilação sua transparência aumenta, até que, estando completamente depurado,
ele adquire uma limpidez perfeita e não apresenta nenhum obstáculo à vista.
Assim acontece com a alma. O envoltório perispiritual, embora
invisível e impalpável para nós, é uma verdadeira matéria para ela, ainda
bastante grosseira para certas percepções. Esse envoltório, se espiritualiza à medida que a alma se eleva moralmente.
As imperfeições da alma são como véus que obscurecem a sua visão;
cada imperfeição de que ela se desfaz é um véu a menos, porém, só depois de se
depurar completamente é que ela goza da plenitude das suas faculdades.
34. Sendo Deus a essência divina por excelência, só pode ser
percebido em todo o seu esplendor por espíritos que atingiram o mais alto grau
de desmaterialização. Se os espíritos imperfeitos não o veem, não é porque
estão mais distantes de Deus do que os outros. Esses espíritos, como os demais,
assim como todos os seres da Natureza, estão mergulhados no fluido divino, como
nós o estamos na luz; somente suas imperfeições são os véus que o ocultam à sua
visão. Quando o “nevoeiro” se dissipar eles o verão resplandecer. Para isso não
terão necessidade de subir, nem ir procurá-lo nas profundezas do infinito. Uma
vez desimpedida a visão espiritual da belida 29 moral que a
obscurecia, eles o verão de qualquer lugar em que se encontrem,
mesmo na Terra, porque Deus está em toda parte.
29 Belida: névoa
ou mancha esbranquiçada na córnea. (N.T.)
35. O espírito só se depura com o passar do tempo, e as diversas
encarnações são os alambiques em cujos fundos ele deixa, a cada vez que reencarna, algumas impurezas. Ao deixarem o invólucro
corpóreo, os espíritos não se despojam instantaneamente das suas imperfeições,
eis por que, após a morte, não veem Deus mais do que o viam quando vivos; mas,
à medida que se depuram, têm uma intuição cada vez mais clara dele. Não o veem,
mas o compreendem melhor: a luz é menos difusa. Assim, quando alguns espíritos
dizem que Deus lhes proíbe de responder a uma certa
pergunta, não é que Deus lhes apareça, ou lhes dirija a palavra para ordenar ou
proibir isto ou aquilo, não, mas eles o sentem, recebem os eflúvios do seu
pensamento, como acontece conosco em relação aos espíritos que nos envolvem em
seus fluidos, ainda que não os vejamos.
36. Assim sendo, nenhum homem pode ver Deus com os olhos carnais.
Se essa graça fosse concedida a alguns, só o seria no estado de êxtase, quando
então a alma se encontra tão desprendida dos laços da matéria que isso é
possível durante a encarnação. Aliás, um tal
privilégio seria apenas das almas de escol, encarnadas em missão e não em
expiação. Porém, como os espíritos de ordem mais elevada refulgem com um brilho
ofuscante, pode acontecer que espíritos menos elevados, encarnados ou
desencarnados, impressionados com o esplendor que os envolve, pensem estar
vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o confunde com o seu
governante.
37. Sob qual aparência Deus se apresenta aos que se tornaram
dignos dessa graça? É sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um
foco resplandecente de luz? Isso a linguagem humana é impotente para descrever,
porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que possa nos dar uma
ideia a respeito. Somos como cegos a quem procurassem inutilmente fazer
compreender o brilho do Sol. O nosso vocabulário é limitado às nossas
necessidades e ao âmbito das nossas ideias; o dos selvagens não poderia
descrever as maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é
extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência
é muito restrita para compreendê-los, e a nossa visão, muito fraca, por eles
seria ofuscada.
Livro "A Gênese" - Capítulo II - Allan Kardec